Eric Clapton da Vila Izabel em Curitiba
O anúncio de que o lendário guitarrista faria um show em Curitiba surpreendeu os moradores da Vila Izabel. Não porque seja inédito, mas porque todos sabem que o morador da Rua Álvaro Jorge tem hábitos reclusos. O “seu Eric”, como o chamam, só sai para fazer compras no Festval, ou então para receber algumas entregas. Ele coleciona DVD’s, CD’s e gosta particularmente de jogos de guerra para seu Playstation. Este foi o tema da única conversa que tive com ele, certa vez. Mas agora o show me pareceu pretexto suficiente para bater palma na frente da sua casa.
Novamente o cachorro latiu em desespero e a cabeça apareceu antes ali na porta, com os mesmos óculos redondos e os olhos miúdos. Desta vez me reconheceu e logo desceu o lance de escadas. Decidi abrir conversa logo, antes dele chegar ao portão:
- Amanhã o grande dia então?
Ele sorriu timidamente e abriu as duas mãos, como se dissesse “pois é”. Minha segunda pergunta foi meio estúpida e quis saber se ele iria de uber, ou a pé mesmo, afinal a Arena da Baixada fica relativamente perto. Soube que o “pessoal” iria buscá-lo algumas horas antes do evento começar. Tomei tempo demais para refletir sobre isso, mas era o necessário para pensar na próxima coisa a dizer, que então saiu como um firme comentário:
- Gostei do setlist. Muito blues.
“Key To The Highway”, “I'm Your Hoochie Coochie Man” e “Nobody Knows You When You're Down and Out” eram ótimas escolhas. Ele acenou a cabeça positivamente e pude ouvir um “sim, sim”. Eu completei que também “Crossroads” é provavelmente o meu blues favorito. Então consegui ouvir plenamente:
- Tava tocando agora.
Só então ele notou que era razoável me convidar para entrar. Afinal, bati palma, elogiei, comentei o setlist e ainda permanecia resoluto na calçada.
O jogo “Call of Duty” estava pausado e li “Return to the game” piscando na televisão. No sofá, cor vinho, um pouco gasto no apoio, vi sua Fender Stratocaster, preta e branca, de um valor incalculável, ligada em um pequeno amplificador ao lado. Ele comentou que tinha acabado de trocar as cordas e a apanhou. Afinou a penúltima corda e começou a tocar o histórico solo. Ao final olhou pra mim, agora esperando meu comentário:
- Gostei. Tá bom, tá bom.
Tocou-a de novo, como se fosse para reforçar, até o seu telefone tocar. Fazia tempo que não via um aparelho desse e estranhei ainda mais ele ser da cor verde, colocado embaixo de uma cristaleira. Ele pediu licença e foi atender, deixando sua Fender ali, absolutamente solitária. Nem pedi e a socorri, tocando o mesmo solo, mas na versão do show do Royal Albert Hall. Percebi que ele interrompeu uma fala e me observou. Ao final da conversa, depois de colocar o telefone no gancho, veio até mim e disse:
- Você toca bem.
Sei a exata dimensão da minha habilidade em solos de blues e recebi o elogio do Eric Clapton como se fosse algo devido. Ao contrário dos elogios a essas crônicas, que recebo com desconfiança e por isso pergunto os motivos.
Falamos também de “Badge”, que ele compôs com seu ex-amigo e vizinho George Harrisson. Comentei que é uma pena eles não se falarem mais, sem coragem de perguntar sobre aquele papo da ex-mulher do solitário beatle. “Layla”, que teria sido pra ela, nem está no setlist:
- Sei lá. Melhor não mexer nisso mais.
Lembrei que ele vai terminar o show com “Before You Accuse me”, que assim parece uma explicação razoável: “antes de me acusar, olhe bem para você”.
Jogamos uma partida multiplayer do jogo “Call of Duty” e perdi feio a primeira. Ele relaxou um pouco na segunda, que venci. Achei que era tempo de ir embora e me levantei do sofá. Ele me conduziu até o portão, quando se lembrou de perguntar:
- Vai no show?
Um pouco constrangido, tive que falar a verdade:
- Não vai dar. Caro pra mim.
- Pior que que tá mesmo. Foi mal. É que eu tenho que…
Olhei para a casa, que já merecia uma reforma e o jardim que pedia um jardineiro. Um portão elétrico certamente traria mais segurança e vai saber os gastos que ele tem com aquele cachorro:
- Entendo, Eric. Bom show lá.