Eric Clapton, morador da Vila Izabel
O famoso guitarrista inglês tem uma carreira de mais de 20 discos, apenas na carreira solo. Antes, integrou bandas célebres como Yardbirds e Cream. É um músico de obra diversificada, que percorre o blues, o rock, o jazz e até o reggae. Em 2007, lançou sua autobiografia, um relato impactante e sincero da sua vida profissional e pessoal. Já há alguns anos, Clapton se mantém recluso, com poucas declarações públicas.
A Rua Álvaro Jorge é o caminho que faço para ir ao mercado Festval. Tirando poucos apartamentos, ela é na sua maior parte composta de casas de muros baixos, varandas com piso de lajota e um carro velho estacionado ao fundo. Invariavelmente, há um senhor sentado em uma cadeira de praia, pegando um sol, e estranhando o cara parado na calçada que olha essas coisas.
Sem uma cebola para fazer o arroz, tomei este mesmo rumo. Um pouco depois de passar pela pizzaria Master, noto, mais à frente, um senhor passeando com seu cachorro. Cena típica aqui da Vila Izabel, que não chama a atenção. Atravesso a rua, nossos passos nos aproximam e, sendo de bom-tom, direciono meu olhar para cumprimentá-lo. Mas, ao identificar o sujeito, não consegui exprimir sequer um “opa”. O espanto era a única reação possível.
Óculos de aro fino, lentes pequenas e redondas, aquelas mesmas de seu amigo John Lennon. Uns olhos miúdos, como dos pássaros que sobrevoam o Instituto Neo-Pitagórico. Os cabelos ainda fartos e esbranquiçados, caindo para trás e cobrindo a nuca. Uma camiseta já bem gasta, shorts e chinelo. Depois que nos cruzamos, me virei para contemplar aquele ícone do blues vivo. Ele abriu o portão e deixou o cachorro entrar antes.
Chegando no mercado, ainda perplexo, eu desandei e parei na seção de frios, completamente esquecido da cebola. Olhava para aquele pedaço de peito de frango pensando no solo de “Crossroads”. O código de barras me remeteu ao acústico, cujo CD roubei da minha mãe e ouvi até ele riscar. Na fila, imaginava nosso encontro e não consegui decidir entre CPF na nota ou não. Ela pressupôs que “não”, pelo silêncio.
Voltei pela mesma rua e novamente parei naquela casa que, imaginei, seria tombada em alguns anos. Consegui ouvir a TV ligada, excessivamente alta, emitindo a voz abafada de algum apresentador de programa policial. Clapton sempre foi avesso a tecnologias e esta escolha trivial era coerente com sua biografia. Fui avesso também a falar com ele já, preferindo ir para casa.
Guardei o peito de frango, só agora lembrando que era cebola que precisava, e concluí que fazia sentido Eric Clapton morar na Vila Izabel. A verdade é que aqui poucos o reconheceriam. O vilaizabelino médio gosta mesmo é de Roberta Miranda, Reginaldo Rossi, Nelson Gonçalves e Roberto Carlos. Estes sim causariam uma aglomeração na Álvaro Jorge e ocupariam a calçada.
No dia seguinte, acordei com o propósito de o cumprimentar devidamente. Só para me apresentar e dizer que sou um grande admirador. Talvez ele gostasse de uma companhia, eu comentasse que toco guitarra e, em algum tempo, compusessémos o “Vila Izabel Blues”.
Parei em frente, anunciando minha presença para o cachorro, que começou a latir. Alguns segundos em que meu coração palpitava. Vejo o vulto sair da sala para a cozinha e penso em voltar pra casa. A porta de madeira se abre, ele me olha, desce um ou dois lances de tijolo e chega ao portão.
- Opa.
Ele não respondeu nada e comecei a ficar nervoso. Queria dizer tudo de uma vez, ou só uma palavra que demonstrasse toda minha admiração. Mas fiz outra escolha.
- Por acaso o senhor teria uma cebola?
Os olhos deles ficaram ainda mais miúdos ao franzir a testa, sem entender aquele estranho pedinte. Ele ajeitou os óculos, mandou o cachorro parar de latir e me fez um sinal para esperar. Foi à cozinha e trouxe, dentro de uma sacola do Festval, uma cebola, fresca e brilhante. Eu o agradeci, excessivamente comovido.
Com metade dela fiz o arroz, saboroso e bem temperado. A outra está exposta, ali, do lado da minha guitarra.