George, o beatle solitário
Os taxistas da Praça Abibe Isfer veem aquele homem sentado no banco de madeira, todas as manhãs, e nem desconfiam. O boné cinza, a blusa de moletom sem capuz e a calça jeans não o diferenciam de ninguém. Somente um beatlemaníaco reconheceria o All Star preto, o mesmo usado no último show da banda, no terraço da gravadora Apple. É por isso que George Harrison escolheu morar na Vila Izabel.
George perdeu a vontade de compor há algum tempo e só tem ânimo para uma rotina que começa ao observar os senhores nas academias ao ar livre. O movimento pendular do simulador de caminhada o distrai por algum tempo. Um senhor desce do aparelho, vê o piá jogando basquete na quadra e George acompanha seu olhar. Conta quatro arremessos e só uma cesta.
O isolamento do mais tímido dos beatles não teve a ver com o fim da banda. Até porque ela tinha que acabar, afinal. Todo mundo já sabia que cada um queria começar logo uma carreira solo. George então fez tudo o que sempre quis ter feito no seu disco “All Things Must Pass”, emplacou sucessos em outros e o dinheiro deixou de ser preocupação. Só o que não acabou bem foi o seu último relacionamento.
Na separação, George contratou um advogado de última hora, o que teve um custo alto no processo. Assim, ficou apenas com uma casa de praia em Matinhos, que precisa de uma reforma na parte elétrica e hidráulica para se tornar habitável. Além de um Fox prata, 2017, em bom estado, mas que o irrita por trazer uma lembrança feliz. O vendedor era idêntico a um amigo do casal e os dois riam enquanto assinavam o contrato.
Hoje ela mora no Água Verde, bairro vizinho à Vila Izabel, mas George está proibido de se aproximar, por determinação judicial. “Jamais faria qualquer coisa a ela”, me confessou, mas algum episódio traumático deve ter ocorrido. Explicar a situação o deixa vermelho e depois um pouco culpado, quando seus olhos abaixam e se fixam no All Star.
No estúdio, John Lennon e Paul McCartney normalmente ficavam de pé, conversando sobre as músicas pelo microfone. George preferia ficar sentado no amplificador e com os olhos na guitarra, improvisando e abafando a conversa dos dois. Até mesmo nos solos evitava levantar a cabeça.
Deveria ter falado “Tudo passa, George”, mas é que achei que ele deveria saber disso. O senhor, depois da caminhada simulada, faria um exercício para as costas. O piá ia eventualmente acertar a cesta e quem sabe até se tornar jogador de basquete. Amanhã tem uma feira nessa praça, George, que não é muito grande, mas talvez vale dar uma passada.
“Isn’t it a Pity” está no mesmo disco de “All Things Must Pass” e e achei curioso que a introdução é semelhante, mas a mensagem bem diferente. George termina cantando “que pena” por uns três minutos, que sempre achei longos demais e que ele deve ter achado insuficientes.