Gilberto, o detetive particular
Chovia muito naquela noite e os bueiros da Rua Guaianazes não aguentavam a vazão, provocando um fluxo de água contínuo no canto da rua. De dentro do café, Gilberto era o que olhava isso com mais atenção, enquanto nós conversávamos. Também ele era o visivelmente mais preparado para aquele tipo de imprevisto temporal: sobretudo preto de couro, com uma gola que cobria seu pescoço e até parte do rosto. E, da mesma cor, um chapéu de feltro, já meio gasto, deixando exposto só seus olhos.
Gilberto costuma chegar no final da tarde, ali pelas cinco, e permanece até umas oito. Pude notar que a primeira dose de conhaque causa um relaxamento quase físico. A mão, antes pousada no balcão, consegue então voltar ao bolso, depois da bebida desaparecer do copo. Ele toma de quatro a seis doses e, entre uma e outra, sai para fumar seu Winston de filtro vermelho, meio amassado e de rápida combustão. Depois de rápidas tragadas, volta ao seu lugar.
Saí para pedalar próximo do horário em que ele, normalmente, vai ao café. Foi quando o reconheci, vindo pela calçada, e decidi puxar assunto, confiante que ele pelo menos lembraria de mim. A freada da bicicleta imediatamente o fez suspender a caminhada e, antes que ele estranhasse, o chamei pelo nome. Ele respondeu meneando a cabeça de leve. Perguntei se ele estava indo mesmo ao café:
- Não, não. Tô indo trabalhar!
Foram dois “nãos” e a exclamação saiu assim como uma resposta a uma ofensa. Senti-me obrigado a me explicar, dizendo que, pelo horário, imaginei que estava indo no lugar que vai praticamente todos os dias. Percebi que ele compreendeu e arrisquei perguntar com o que ele trabalhava mesmo. Gilberto respondeu com uma pergunta retórica:
- Como que eu vou te explicar…
Respirou mais fundo e olhou para o outro lado da calçada. Uma senhora levava seu cachorro para passear e nós dois olhamos os dois chegarem até à esquina, quando ele voltou os olhos pra mim:
- Eu sou os “olhos da justiça”.
Minha primeira associação foi com “testemunha”, que não é nenhuma profissão. E “oficial de justiça” não exigiria nenhuma introdução, espera, nem figura de linguagem. Fui obrigado a arriscar alguma alternativa:
- Gilberto, você é detetive?
Ele não precisou responder. O silêncio era a confirmação sutil e suficiente. Confesso que o que ele falou em seguida eu ignorei, pois fiquei meditando sobre aquilo. A verdade é que tudo indicava que ele era um mesmo. Problemas com bebida, cigarro barato indicando dificuldade financeira, e o sobretudo preto de gola alta era inequívoco.
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Os maridos da Vila Izabel sabiam o custo de pagar o pão naquela padaria. Não pelo valor dele, mas pelo esforço de não ser rendido por aquele par, do outro lado do caixa, cujo decote não se esforçava em ocultar. Restava aos heróis concentrar o olhar no movimento do dinheiro, saindo da própria carteira e indo à inocente mão dela, ou fixá-lo no Halls Azul à venda logo atrás. Ela parecia saber desse custo e se deleitava silenciosamente depois, lixando a unha sem precisar.
Os funcionários estranhavam que ela saía no meio da tarde para “dar uma caminhada” e voltava com ânimo redobrado, com comentários espirituosos e sorrisos largos. Mas ninguém afirmava nada. Isso até aquele Fiat Uno, azul escuro, sem calota, ficar na frente de um edifício na Rua Parintins. A fumaça da janela do motorista era constante e, ao final, guimbas de cigarro dormiam no chão.
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Gilberto acha graça e ri sozinho quando vê a placa de “vende-se”, no imóvel em que a padaria funcionava. A vontade de fumar é maior do que a do conhaque.