Ele mora na rua e gosta dela em todos os sentidos. A calçada, o meio-fio, a buzina de carro e principalmente a escada da lotérica, onde costuma dormir. Porém, você nota que ele tem algum recurso, ou pelo menos já teve, pois usa diferentes roupas, quando mendigos normalmente usam sempre a mesma. Uma delas é uma bonita jaqueta azul-marinho da Pierre Cardin, que eu gostaria de ter. Os traços da mendicância ficam só no rosto, com as manchas pretas da sujeira, o envelhecimento precoce e o olhar permanentemente cansado.
Conversei com ele quando um dia, para compensar uns pecados, saí para distribuir uma marmita. Na Av. República Argentina, ele foi o primeiro que apareceu no caminho, ali naquela escada. Ficou comovido com o gesto, agradeceu e quis puxar conversa. Mendigos são solitários e gostam de falar, então dividiu sua história comigo. Notei que ele comia devagar e se desculpava quando mastigava de boca aberta.
Curitiba sempre foi uma cidade em que Ramones teve público fiel. O show em 1994, na Pedreira Paulo Leminski, marcou uma era. Ele esteve lá, mas preferiu falar da sua banda cover, em que era o baterista. “Você é o Marky Ramone!”, brinquei e ele sorriu. Desde então, quando o vejo, chamo só de “Marky” e ele responde com “E aí, piá!”.
“Tinha show todo dia”, Marky comentou e contemplou por alguns segundos um prédio, que deve ter servido de moldura para uma memória que apareceu. Ser, por algumas horas, o baterista da banda punk mais famosa do mundo compensava todo o esforço. O grupo acabou quando o vocalista decidiu sair. “Parece que abriu empresa, negócio desse”. Os outros membros se uniram na debandada, exceto Marky que, se não fosse Marky Ramone, não saberia o que fazer da vida. E não soube mesmo, então só sobrou a rua.
Seu espírito punk jamais o deixaria trabalhar oito horas por dia. Por isso, trocou a revolta contra o sistema pela revolta contra si mesmo. Marky não quer voltar para casa que, aliás, é ali perto. Soube que sua mãe implora e seu pai ordena, mas ele ignora os dois. De vez em quando, recebe comida e roupas limpas.
Me despedi de Marky e sua história ficou na minha cabeça. Peguei a conta de gás e fui pagar na lotérica, como faziam com mais frequência lá por 1994. Perguntei para a atendente o que ela achava daquele morador da escada. “Ah, tá sempre aí. Faz muitos anos”. Ela confirmou que seus pais moram no bairro e que, inclusive, um dia o pai o retirou à força. Marky desapareceu por um mês e “voltou meio diferente, mais calmo assim”.
Imagino que ele deve ter tomado alguns remédios, que talvez tome até hoje, de forma recreativa. Até porque certos antidepressivos são como uma cachaça, mas sem ressaca. Ou pior, em uma triste coincidência, Marky passou por uma lobotomia, cujas sílabas marcou tantas vezes, na caixa de sua bateria, o famoso início de “Teenage Lobotomy”:
Lobotomy! Lobotomy! Lobotomy!
Parabéns pelo olhar que vc da para o outro! Te admiro!
Muito boa a crônica, André!