O velho, o mar e a padaria
É quase consenso que o melhor pão do bairro é o daquela padaria, em certa esquina da Rua Guaianazes. Tanto que a chamam só pelo nome do dono, conhecido de todos por aqui. Então em um fim de tarde, a ideia de um pão com manteiga, junto com o último café do dia, se apresentou irresistível. Peguei duas notas de dois reais e saí para a rua, com fome e curiosidade.
Mais perto do que calculava, cheguei rápido e parei um tempo na frente. Um prédio cinza de dois andares, com a parte de cima vazia e a padaria funcionando na parte de baixo. Pude ver um capacho bordô, com o nome da padaria em letra azul-escura. Ao lado, uma kombi branca descarregava mercadoria e notei o gramado, com um painel fincado. Da mesma altura do prédio, ele exibia uma faixa, que estava despregada e só se sustentava enrolada. Com esforço, dava pra ver a ilustração: uma cesta de pães, sobre a toalha de mesa, ornamentada com uma taça de vinho e várias flores.
Deve ter sido a contradição evidente entre o melhor pão do bairro e esse painel defeituoso que me fez ficar ali por mais alguns segundos. A faixa assim caída, parecia, parecia…algum trecho de algum livro. Tinha certeza de que havia lido a exata descrição daquela imagem. Limpei o pé no capacho, provavelmente mostrando uma cara de profunda reflexão.
- Pois não, senhor.
A gentileza da atendente me pegou de susto e a realidade, essa leitora desinteressada, se impôs. Uniforme branco, batom vermelho forte demais e vários brincos na orelha direita. A demora na minha resposta provavelmente reforçou sua cara de cansaço e tédio.
- 2 pães francês.
Era “francês” ou “franceses”? Nem me esforcei para lembrar da simples regra. Enquanto ela pegava os pães, voltei à minha biblioteca imaginária, com dezenas de obras no braço, folheando desesperadamente cada página. Logo ela me interrompeu novamente, me entregando uma sacola, junto de um pequeno papel com o valor anotado. Observei a fila com três ou quatro pessoas e comemorei, discretamente, o tempo que isso me daria para seguir a busca.
Mas chega a minha vez e a faixa despregada não iria virar literatura. Seria só uma “faixa despregada” e eu não teria o talento para eternizá-la com uma descrição original. Vencido, entrego o pequeno papel ao homem atrás do caixa. Pelos cabelos brancos, julguei ser o dono, o conhecido do bairro - “magro e seco, tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas”. Entreguei as duas notas de dois reais e ele aproximou as mãos - “cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes”. Com “O Velho e o Mar” aberto na página exata, reli o trecho:
- A bandeira de uma derrota permanente!
Consegui falar baixo, mas a excitação da descoberta era grande e provavelmente saiu bem compreensível. E também o “porra!”, logo depois, como um desabafo. Ele - “Santiago” - fingiu que não ouviu, para preservar a etiqueta social, que meu delírio resolveu rasgar ao meio.
Desde então, meio envergonhado, não voltei lá e tenho preferido comprar pães no Festval, o maior mercado do bairro. Ele tem um painel em perfeitas condições, exibindo pães, frutas, verduras, refrigerantes e congelados. Mas não tem referência literária, nem nada. O atendente me informa o valor, eu entrego as notas, ele agradece, eu falo até “boa tarde” e nem se lembra de mim.