Problemas do coração
Não esperava que o Vasco acertasse todas as cobranças e nós fossemos eliminados em casa. Andando até a casa do amigo para assistir ao jogo, imaginei uma semifinal e senti uma palpitação, que não sentia há algum tempo. A verdade é que meu coração anda ocupado com outras coisas para além do Athletico. Mas não ontem. Por isso, quando o sujeito fez o último pênalti, senti aquele desconfortozinho na tal região esquerda.
Coisa ridícula. Trinta e poucos anos e tal, mas parece criança. Minha consciência me repreendeu, quando lembrei de que até meu pai devia estar com coração machucado. Cheguei em casa, sentei no sofá, revi os lances pelo celular e o arremessei no outro canto. Gritei um “merda!” sozinho na sala, ali por meia-noite e pouco. Sim, era preciso, naquela hora, fazer da dor um drama.
Acordei como se não tivesse dormido, mas tinha uma obrigação. Eu teria que acompanhar meu avô em uma consulta, um cardiologista, e minha vó nos levaria de carro. Meu avô tem o coração das mesmas cores e também devia estar machucado. Mas ele tem tanta dor, em outras regiões, em maiores graus, que essa devia estar anestesiada, ou devidamente compensada. Antes de puxar conversa, lembrei de nosso antigo pacto silencioso: se o Athletico perde, o Athletico não é assunto.
Bom para dimensionar uma eliminação nas quartas de copa do brasil foi observar meu avô. O esforço absurdo de descer do carro e sentar na cadeira de rodas - um pedal levantando, um risco imenso. Alguém para levantar uma perna enquanto outro o ajuda a ficar de pé. A cadeira não avança no elevador, tem que ir de ré. Para ao final disso, a incerteza do que o médico vai falar. Minha dor de coração não entrou nem na sala de espera.
Enquanto os dois estavam na consulta, fiquei ali fora e consegui ler duas páginas do livro. Quando um senhor senta ao meu lado e eu o reconheço imediatamente. Mesmo de cabeça baixa, concentrado em enxergar a data do exame, vi o Farinhaki. Quem tem coração rubro-negro sabe quem é e, quem não tem, basta dizer que é um dos presidentes mais importantes do clube. Tive que puxar assunto e tivemos que falar do jogo. Criticamos o treinador, depositamos esperanças na sulamericana e nos despedimos. Enquanto o observava esperando pelo elevador, lembrei de uma história que meu pai contava:
- Filho, uma vez eu te levei no colo pro jogo e o Farinhaki começou a nos olhar. Daí chegou até a gente e falou: “é por isso que sou athleticano”.
Eu precisava contar tudo aquilo pro meu avô. Enquanto esperávamos minha avó chegar com o carro, vi a oportunidade e pensei nas palavras. Minha tal dorzinha do coração, a coincidência do cardiologista, o Farinhaki, a memória do meu pai, meu pai me acompanhando e hoje eu, de certa forma, acompanhando você, vô. Mas quando essas coisas vem o coração sufoca e nem deixa falar. Segurei a falta de ar na garganta e me concentrei em não deixá-la sair. Tive que falar de outra coisa, para não falar aquela - único remédio que encontrei. Perguntei que rua era essa mesmo e meu avô disse que não sabia.
Eles me deixaram em casa e, antes de eu sair, meu avô me chamou:
- André.
Olhei pra ele, que então conseguiu dizer o muito mais do que o suficiente:
- Obrigado.